“A gente até pode enterrar os nosso sonhos. Mas é impressionante como as coisas que a gente não fez ficam latejando na nossa cabeça. As coisas não-feitas se acham as mais importantes.”
Aquilo que não se concretiza, os desejos que nunca se tornam uma realidade material em nossas vidas, provocam marcas tão profundas em nossa identidade quanto aqueles que, por sorte, força ou acaso, acabam vindo a se realizar. Este é o mote disparador do espetáculo Aniversário das Coisas Não Feitas, realização do Ana Núcleo Artístico, e que está em cartaz na Oficina Cultural Oswald de Andrade.
A celebração, como o próprio nome diz, acompanha a história dos aniversários destes não-feitos, através da vida de uma protagonista. “Era uma vez uma menina chamada Luísa. Luísa não tinha uma história. Ela tinha dois hematomas no joelho, um medo enorme de se perder e nenhuma história.” Ano a ano, a não história de Luísa vai se confundindo com seus momentos mais importantes, aqueles que nunca aconteceram, entre conquistas e frustrações, desde aquela vez em que Luísa tentou fugir de casa e não deu nem a volta no quarteirão, até sua ausente festa de quinze anos, passando pelos amores não vividos, e por seus sonhos não realizados.
Dirigido por Vann Porath, o projeto, em uma tentativa de integrar diferentes campos da arte, busca na performance e na gastronomia elementos para ajudar a tornar a experiência do espectador ainda mais potente. No palco, as duas atrizes Elaine Belmonte e Daniela Schitini são acompanhadas da acordeonista Camila Borges e da chefe de cozinha Simone Borsolari, esta última responsável por preparar alguns pratos que são servidos para o público conforme a peça avança.
Através destas múltiplas linguagens, o espetáculo se pretende, em uma espécie de inversão dos valores negativos do arrependimento e da auto-comiseração, uma celebração das coisas não feitas, um momento para realizar, enfim, a devida equivalência de importâncias, igualando em um movimento o que foi feito e o que não foi feito, o que foi dito, e o que foi calado, o ser e o não ser. Desde o início – em uma sequência de imagens que se sobrepõem como fotos antigas (estes eternos registros de ações e aspirações não realizadas) -, o espetáculo funciona como um mecanismo de auto-incompletude, uma declaração de atos que se sobrepõem e expõem as diversas faces do que nunca aconteceu.
O não feito é exposto como um simples lapso, como uma grande ausência, como uma coincidência, como um acidente, como uma benfeitoria, como um acaso, como um destino, como uma escolha, mas acima de tudo, como uma peça fundamental da nossa identidade. Como uma esponja-do-mar, repleta de buracos que nada são senão exatamente aquilo que a constituem; um animal como nós, cujas ausências são tão importantes quanto as presenças em si.
Através destas diversas faces, as duas atrizes compõem uma dramaturgia fragmentada e fragmentária, que mais do que apenas justaposição de momentos da vida de Luísa, nos jogam para a decomposição de nossas próprias vidas, cujos significados ficam perdidos em um mar de realizações e frustrações às quais nunca conseguimos dar os devidos pesos. No que concerne ao que não fizemos, seremos sempre criaturas trágicas, cujas limitações humanas fazem com que nunca tenhamos acesso a outros pontos de vista de nossas próprias narrativas, sempre condenados a esta visão fragmentada e falha, produzida por nossa própria memória, de nós mesmos.
Nossas identidades, presas a este redemoinho do que nos aconteceu, não pode ser deslocada, testada em outros cenários, readquirida. Os não feitos estão colados, cravados em pedra, presos como penduricalhos enroscados nos grossos pelos do búfalo, grudados como o lixo arremessado às costas da barata kafkiana, que acabaria por matá-la. É a nossa obsessão em descolá-los de nós, em enxaguar os não-feitos com nosso currículo de realizações, aquilo que mais verdadeiramente nos fragmenta, neste processo de retroalimentação que é a projeção de nossas identidades futuras. Uma estratégia inútil, um terreno inócuo, que funciona apenas aqui, no teatro, quando podemos brincar de refazer uma cena quantas vezes quisermos, de Ofélias e de Ifigênias. Que aprendamos a celebrá-los, então, os não-feitos, para que não terminemos como Luísa, a menina que, suspeito eu, não tinha nenhuma história exatamente porque tinha um medo enorme de se perder.
Serviço
Aniversário das Coisas Não Feitas
Local: Oficina Cultural Oswald de Andrade
Rua Três Rios, 363 – Bom Retiro – São Paulo
Sextas-feiras, às 20h, e sábados, às 18h
De 04 a 12 de agosto